quinta-feira, 29 de julho de 2010

Quando um anjo morre



Eu não deixo nunca de me perguntar, perscrutando cada fenda de meu coração, procurando em cada canto dele desabitado se um dia em minha vida vou poder viver sem morar em Bonança. É qualquer coisa de pitoresco, de ingênuas pinturas naturais, e há tanta vida nessa vida calma, quase bocejante, nessa ternura que embala seus moradores, como afago de mãe. Minha história anda escrita nas suas ruas.

Hoje mesmo, precisei ir à rua, comprar fubá para fazer angu. Você já comeu angu de fundo da panela? Não, pois precisa provar. Aprendi a comer aqui em Bonança. E engraçado, os meninos que brincam em frente a minha casa, é quase um pequeno batalhão de meninos bobos, caneludos e felizes, não faziam a balbúrdia sagrada de todos os dias. Não bateram palmas na minha casa pedindo: ô dona Laura, a senhora pode pegar a bola que caiu no seu quintal? Nem ficaram papeando sobre as meninas, sentados no meio fio debaixo da minha figueira. Nem cantaram músicas num inglês pra nenhum inglês ver. Havia silencio. E, confesso, muita melancolia, porque esses meninos enchem a rua de uma alegria que contagia. Uma rua sem crianças brincando no fim da tarde é uma rua morta. Eu só ouvia as cigarras a cantar de tardinha.

E fui seguindo a diante, pela rua de seu Brito, que estava no muro do vizinho conversando. E quanto mais proximo do mercadinho eu chegava mais via a rua apinhada de gente, com suas vozes e o colorido de suas roupas de dias especiais. Não, não era um dia especial. No caminho, fui colhendo a história, como se em cada grupo colhesse uma flor pra formar um ramalhete de gérberas no fim. E então eu conheci enfim, o motivo que tirou os meninos lá da rua, as mães com seus filhos pequenos, as velhas senhoras fofoqueiras de seus bancos, o perfume das flores do campo, a algazarra das meninas de bicicleta, tudo isso porque havia morrido um anjinho.

Jandira fechou a sua lojinha de miudezas. Dayse fechou a sua escolinha sempre aberta para a matrícula de novos alunos. O mercado de Manoel só havia cacau, a caixa. Nunca vi o mercadinho de Bonança tão tranqüilo e vazio. A padaria anunciou solicitamente que não haveria pão. Dona nininha não saiu pra conversar com dona. Iraci embaixo da mangueira de Jenniery. O barbeiro não exerceu a sua tácita função. Seu Julio tão pontual nas suas obrigações não deu corda a seus relógios e não abriu a relojoaria. Na farmácia D. Vânia esperava o enterro passar com os olhos cheios de lágrimas, poderia ser um dos seus meninos, dizia. Bonança esperava o enterro passar. Numa secreta gravidade, numa solidariedade muda e solícita aos familiares da criança morta. Era um menino que foi atropelado ontem de tarde. No horário exato em que os meninos de minha rua brincavam de se esconder no quintal da minha casa.

Bonança chorava por um filho seu. E tudo isso me comove e me enternece. E nesses grandes acontecimentos de Bonança eu sempre me pergunto se existe lugar assim igual a esse. Antiquado, discreto e solidário a dor. Há uma certa beleza em seguir rituais tão antiquados, um certo conforto íntimo, uma segurança e uma doçura em saber que existem pessoas que se compadecem com o sofrimento alheio.

E talvez a resposta para as minhas dúvidas sobre ser feliz longe de Bonança esteja tão clara. Mas a pergunta subsiste sempre. É possível ser feliz longe de Bonança?


PS: O filho morto, Cândido Portinari.

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