domingo, 25 de abril de 2010

Blues para uma estranha história


Sempre que vou encontrar o meu bem eu procuro a melhor roupa, o perfume na covinha do seio e detrás da orelha. Preparo um texto de elogios, mas erro falas, destrambelhos os desafios, chego a gaguejar de medo de ti. De soluços do coração aos pulos engulo palavras, desmemorio tudo. E se ensaio toques de carinhos em teu rosto, em teu gosto, em teu posto, tremo as mãos e as escondo que de medo elas te machuquem ao invés do intento que me guia. E se penso em revelar qualquer coisa do que desejo te dizer inundando de palavras teus ouvidos loucos, e as flores que arranham minha garganta talvez pudessem vir em meu socorro. E me engano. Volto mais uma vez pra casa, chutando pedras, relembrando o poema de Vinícius que eu gravei mal gravado pra declarar pra ele. Ele que tanto me pediu em dia de lua que eu lhe recitasse. Mais pausadamente. Não me lembro o resto. Cheguei em casa e comecei a assistir Leo e Bia, eu sabia que era bom, mas sei lá, não tava afim, nem de mim, nem de ti, nem do blues. Do lado de fora da madrugada árvores farfalham com um vento forte que passa e dois morcegos saem correndo pra não sei onde que não é pra minha janela. Chove. Chove lágrimas das duas luas que crescem nos meus olhos febris. Na noite da rua não passa um carro. Na noite da rua há a sordidez da solidão escondida atrás do poste com uma faca entre os dentes. Passa lá inocente. Só sei que a noite é difícil. Todas tem sido difíceis benzinho. Já os cachorros dormem. Os vizinhos dormem. As estrelas dormem. Só eu ainda não. O céu anda entediado. Até os anjos da guarda dormem e roncam sonho de feliz ronco da noite. Tava com saudades! Eu também, te respondo sem pensar. Fui pro sofá. Penso. Penso muito. Penso antes que amanhã tenho o banho do cachorro para dar. A leitura daquele livro de arte pra fazer. Ligar pro Carlos. Lavar as roupas de cor clara. E pensar em você que toma todo o tempo do que hei de fazer. Amor se estranha do sobrado põem feitiço em qualquer um, já dizia o Oswaldo.



PS: Conversação. Henri Matisse. Fauvismo Francês. Para Matisse, "Fauvismo é quando se usa o vermelho".

domingo, 18 de abril de 2010

Notas para ... Nº1


Infelizmente falha a inocência
Nosso toque
Passeio de mãos
Teu regaço morno
No sorriso
Do impreciso
Do meu amor.

Infelizmente falha a inocência
Da não reticência
Do meu cabotismo
Do teu cinismo
Da verdade
Não dita a inverdade irrestrita
Do abismo de teu amor.

Infelizmente falha a inocência
Da nossa indecência
Da malidicência
Observadora de nossos olhares
Puros
Turvos
Investidos de amor.

Infelizmente falha a inocência
Do nosso silêncio
Da minha ausência
Do teu sortilégio
Deste segredo
A estrela do meu degredo
Infelizmente hoje falha
A inocência com que te escrevo.



PS: O despertar da Consciência, William Holman Hunt. Esta obra é inspirada em David Coperfield de Dickens, o artista mostra um homem e uma mulher, provavelmente amantes. O homem toca uma canção sobre uma moça que relembra a inocência da infância. A mulher prestes a se levantar é despertada pela sua consciência. O espelho ao fundo revela que a mulher está olhando para a janela, aparentemente em direção ao futuro, para um jardim onde há rosas brancas que evidenciam pureza para a qual a mulher pode retornar. O gato ao canto representa o homem com sua presa e o pássaro representa a mulher que pode voar e se salvar do carrasco.


sábado, 17 de abril de 2010

Auto-análise subjetiva de uma doninha do subúrbio azul


Ah, deixe-me explicar aos senhores essa minha fotografia! Nesse dia eu estava tão infeliz, e vocês nem sabem! Justamente pela manhã, ainda quando eu fazia o café da manhã do meu querido e estimado marido e das minhas lindas, queridas e bem comportadas oito crianças, descobri que o meu cérebro é tamanho de um grão de ervilha. Veja bem, uma ervilha já é audaciosamente pequena, imagine agora um grão de ervilha que tamainho não é hein? E fiquei realmente muito chateada. Eu quando mais jovem tinha sonhos imensos, grandes sonhos, realmente eu acreditava que poderia realizar a todos apesar da minha limitada capacidade de pensar. E no entanto, só um deles realizou-se! Casar! Quanto aos outros, bem, meu marido é conservador e eu pretendo ser a melhor esposinha do mundo, para que ele nunca se arrependa de ter me desposado. Antes de me casar, eu era uma moça aplicada! Lia bem, tinha uma bela caligrafia, sabia bordar, costurar, e cozinhar e meu sonho era ser modista, mas logo me casei. E veio a Lucrécia, a Leopolda, a Liliana, a Léia, a Lídia, a Lucrecia mais uma vez, a Lucia e por fim o Luis impedindo que fosse modista. Mas então quando eles crescerem mais um pouco, eu já me decidi, vou fazer um curso de doceira, pra vender por encomenda, porque dizem que isso é coisa que dá muito dinheiro, e as minhas duas Lucrecia estão precisando de novos sapatos, e a Leopolda de um corte de tecido novo. Ah sim, ia-me esquecendo da fotografia. E meu sorriso! Sorriso de quem anda muito feliz por ter descoberto o melhor e mais eficiente sabão em pó do mundo. O Omo!

PS: Roberta Lapertosa.

Sweet Gérbera


Sabe do que me lembro? Av. Conde da Boa vista, apinhada de gente, correndo, amedrontadas com a entrada dos carros tanques, com as marchas sincronizadas bizarras e inquietantes dos soldados que vinham a nós. Eu via tudo por entre uma cortina de fumaça do meu marlboro. Se eu senti medo? Nunca senti tanto medo na minha vida. Um dia um amigo me disse, se você tem cu você tem medo. Eu tinha um medo do caralho naquele dia e eu só pensava que eu realmente tinha um cu fudido. Se eu me arrependo da campanha? De gritar microfonado as minhas intenções, as minhas discordâncias? Desmiolar as idéias pra não ter mais que pensar por você? Se eu me arrependo de matar com tiros e sem calcinha em troca de uma nota de 10 reais pro almoço chinfrim? Eu sou uma puta filha da puta! Se naquele dia eu me arrependesse de ser quem eu sou e de lutar até o fim pelas minhas parcas, falhas e tortas convicções, pela minha única e possível liberdade de ser livre, eu não seria eu, Ana Salazar. E toda a doce Ana doce que era antes de ser hoje quem eu sou, dei-te a ti, a minha causa maior. O que sou hoje? Fada alada enterrada num esgoto. E ainda assim, prefiro assim. Hoje, enfrento-te com pernas trêmulas, frio na espinha, cu piscando de medo, e um gosto estranho de café preto dado aos goles nas carreiras de um velho bar antes de te enfrentar com punhos dobrados que seguram uma flor com amor.



PS: Fotografia de Marc Riboud.

sábado, 10 de abril de 2010

De repente reconheço: eram campos de Granada


Hoje na feira
Comprei abacate,
Um arranjo de gérbera,
E duas frutas cítricas.

Eu adormeci céu limpo
Estrela pura
Acordei em dias de chuva
Charada da minha esfinge, sente que sinto
Os dois acordares,
Digo-te pesadelo, choro
Volto a dormir,
Acordo-te sonho
Do primeiro já não era sonho,
Do segundo esqueci por inteiro.

Vou te escrever uma poesia, infame, insana,
Descrer o que já não creio em mim

Mas cala-te, ainda na tua noite recito um poema de amor com os olhos.
Hoje não foi dia de feira.


PS: Chagall, Cântico IV.