sábado, 31 de julho de 2010

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Quando um anjo morre



Eu não deixo nunca de me perguntar, perscrutando cada fenda de meu coração, procurando em cada canto dele desabitado se um dia em minha vida vou poder viver sem morar em Bonança. É qualquer coisa de pitoresco, de ingênuas pinturas naturais, e há tanta vida nessa vida calma, quase bocejante, nessa ternura que embala seus moradores, como afago de mãe. Minha história anda escrita nas suas ruas.

Hoje mesmo, precisei ir à rua, comprar fubá para fazer angu. Você já comeu angu de fundo da panela? Não, pois precisa provar. Aprendi a comer aqui em Bonança. E engraçado, os meninos que brincam em frente a minha casa, é quase um pequeno batalhão de meninos bobos, caneludos e felizes, não faziam a balbúrdia sagrada de todos os dias. Não bateram palmas na minha casa pedindo: ô dona Laura, a senhora pode pegar a bola que caiu no seu quintal? Nem ficaram papeando sobre as meninas, sentados no meio fio debaixo da minha figueira. Nem cantaram músicas num inglês pra nenhum inglês ver. Havia silencio. E, confesso, muita melancolia, porque esses meninos enchem a rua de uma alegria que contagia. Uma rua sem crianças brincando no fim da tarde é uma rua morta. Eu só ouvia as cigarras a cantar de tardinha.

E fui seguindo a diante, pela rua de seu Brito, que estava no muro do vizinho conversando. E quanto mais proximo do mercadinho eu chegava mais via a rua apinhada de gente, com suas vozes e o colorido de suas roupas de dias especiais. Não, não era um dia especial. No caminho, fui colhendo a história, como se em cada grupo colhesse uma flor pra formar um ramalhete de gérberas no fim. E então eu conheci enfim, o motivo que tirou os meninos lá da rua, as mães com seus filhos pequenos, as velhas senhoras fofoqueiras de seus bancos, o perfume das flores do campo, a algazarra das meninas de bicicleta, tudo isso porque havia morrido um anjinho.

Jandira fechou a sua lojinha de miudezas. Dayse fechou a sua escolinha sempre aberta para a matrícula de novos alunos. O mercado de Manoel só havia cacau, a caixa. Nunca vi o mercadinho de Bonança tão tranqüilo e vazio. A padaria anunciou solicitamente que não haveria pão. Dona nininha não saiu pra conversar com dona. Iraci embaixo da mangueira de Jenniery. O barbeiro não exerceu a sua tácita função. Seu Julio tão pontual nas suas obrigações não deu corda a seus relógios e não abriu a relojoaria. Na farmácia D. Vânia esperava o enterro passar com os olhos cheios de lágrimas, poderia ser um dos seus meninos, dizia. Bonança esperava o enterro passar. Numa secreta gravidade, numa solidariedade muda e solícita aos familiares da criança morta. Era um menino que foi atropelado ontem de tarde. No horário exato em que os meninos de minha rua brincavam de se esconder no quintal da minha casa.

Bonança chorava por um filho seu. E tudo isso me comove e me enternece. E nesses grandes acontecimentos de Bonança eu sempre me pergunto se existe lugar assim igual a esse. Antiquado, discreto e solidário a dor. Há uma certa beleza em seguir rituais tão antiquados, um certo conforto íntimo, uma segurança e uma doçura em saber que existem pessoas que se compadecem com o sofrimento alheio.

E talvez a resposta para as minhas dúvidas sobre ser feliz longe de Bonança esteja tão clara. Mas a pergunta subsiste sempre. É possível ser feliz longe de Bonança?


PS: O filho morto, Cândido Portinari.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Do cinza


O monstro continua dormindo, debaixo da cama, encolhido de frio, mas ele ainda assombra. Só espera eu fechar os olhos para acordar. No quarto da menina sob o pé da figueira, há silencio e pela chuva fininha que cai lá fora, a sombra de um passarinho, voa, sem medo da chuva.

PS. Árvore cinza, 1911, de Modrian. Esse quadro representa seu período simbolista, fundamental para atingir suas obras abstratas.

domingo, 25 de julho de 2010

Do dia em que eu vi ciganos


Era num tempo em que o tempo não se esquece, e as engrenagens da minha vida onde os acontecimentos parecem se repetir me fez voltar a ele. Uma sensação jamais esquecida e que nem mesmo eu pude distinguir com clareza fez minha memória regressar a um passado tão longínquo. Foi num tempo em que eu vi ciganos.

Eu deveria ter ao menos seis anos e minhas lembranças eram sempre pregadas com firmes alinhavos de pontos duplos responsáveis por até hoje eu me recordar com nitidez pequenos acontecimentos que de tão insignificantes deixaram marcas substanciais.

Brincava no terreiro debaixo de um pé de jenipapo que ainda posso sentir o cheiro forte e doce, a frente da casa do engenho uma fogueira quase extinta da noite passada, mas ainda sua fumaça turvava a minha visão. Eu sustentava um galho seco na mão, fazia arabescos com ela no chão, tão absorta nessa atividade, senti apenas de súbito a mão da minha avó agarrando a minha. Arrastou-me para dentro de casa de uma forma quase selvagem enquanto eu me debatia sem saber o motivo de ser eu sua presa. As tias velhas correndo dentro de casa fechando portas e janelas, mas se aboletando atrás delas para expiar pela fresta. Eu ainda tinha coágulos de sol na vista quando eu vi por entre uma fresta, que mal cabia meu dedo mindinho de seis anos de idade, um grupo de ciganos bandoleiros que saíram de dentro da mata que cercava minha casa.

Como eu me recordava com nitidez de duas mulheres bonitas, que se sobressaiam do resto do grupo. Uma delas usava um vivo vestido vermelho. Parecia uma rosa arisca. E a outra, me lembrava os coágulos de soldos meus olhos. Estava de amarelo florescente. Eram os ciganos que passavam por minha porta em dias de lua cheia. Na noite anterior eu havia escutado um barulho longe, e que não incomodou de forma alguma meu sono. Mas me deixou lembranças, o som, as cores, a neblina de fumaça, o cheiro doce e enjoado de jenipapo, e o medo infantil da minha avó e das tias velhas. Depois ouvi a conversa na cozinha sob o som da chaleira bulindo no fogão. Tinham medo de ciganos porque diziam que amargavam as pessoas quando as fitavam. Como se precisasse disso para tornar azedas as minhas tias velhas.

Ontem foi noite de lua cheia. Reencontrei antigas histórias de ciganos na época em que me mudei para Bonança. Há um morro, ainda há uma mata densa, e sempre houve lua cheia, por muitos anos escutei o mesmo som de tambores e pandeiros, a mesma música alegre e doce. E senti o mesmo medo cristão da minha avó e das minhas tias velhas. Só não mais encontrei ciganos.



PS: Portraits country, Gustave Caillebotte. Pintor francês, da escola realista. Seu objetivo era pintar tudo o que via de forma realista, como Degas e compartilhava o comprometimento com a verossimilhança ótica dos impressionistas.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

É que anda contra o vento, desafia o sofrimento e carrega o mundo com a mão


O que você faria se durante em toda a sua vida fosse julgada de forma a ser culpada estando inocente. Como se você fosse acusada e interpretada da forma que você se sabe não ser. Sempre fez frio nos meus pés descalços, deve ser por isso que eu sempre me asseguro de ter meias limpas e felpudas na gaveta. A dureza do coração sempre foi questionada. Não faça isso! Não seja arrogante! Há prepotência nisso e não sei mais naquilo. Se de certa forma o seu valor realmente não fosse conhecido e você lutasse por si mesma sozinha por ideais abstratos. Lutando não sei como pela própria libertação. Há chá de erva cidreira na caixinha verde em cima da mesa. É pra dias de ventania. De três é a do meio. Um deles gosta mais. A outra lhe agrada tanto. De três ainda é a do meio. Há um ventinho que entra pela fresta da janela e encontra a solidão. E se tem gosto de imensidão. Se procura a liberdade. Se conspira o mundo de certa forma a seu favor. Ainda a julga. E as rasteiras que a vida lhe dá. Qual, ela sempre se pergunta. Que de tão grande sucedeu que não tenha olhado pra trás e visto tão miudinho, tão insignificante que no fim até acredita que foi pra seu bem. O baque nunca é grande demais. As forças também nunca se exaurem. Ela sempre se ergue. Como flor do campo. Lírio do campo ou alecrim dourado. De tão teimosa vive. E feliz. Se protege, é por interesse próprio. Se tenta ajudar, há nisso egoísmo. Se elogia, não ela não elogia. Há pior maneira de ser interpretada quando se é vista de forma equivocada? É má! Diz. Mas gosta de todos os animais do mundo, adora crianças e odeia que maltratem os velhinhos. É justa, mesmo que às vezes impiedosa. Luta por menos hipocrisia, isso ela abomina. Gosta da verdade. Gosta de leveza e azul do céu. Ama tanta gente. Às vezes se surpreende. Coração tem. Tem tanto que é passional quase sempre.

Sabe bordar. Cozinha divinamente. Cuida do lar. Sabe costurar. Lava roupa e perfuma com flores. Ler todos os livros do mundo. Sabe recitar. Escreve poesias. Sabe desenhar. Também pintar. É romântica como Eva Braun. De um romantismo sereno e de calmo domínio. Gosta de flores e do lar. É responsável. Acorda cedo. Procura sempre estudar. É formada e falta só trabalhar. Resolve com elegância o dilema da caixa de Egheworth e sabe derivar. Faz compras e feiras, resolve tudo a que se prestar. Mas diz que é manipuladora, autoritária e mal educada. O que ela aprendeu de menina: a lutar pelos seus direitos, a não abaixar a cabeça, possuía a valentia sem freios que a mãe sempre desejou para a sua estirpe. Mas que nela não admitia. Incomodava-a a sua independência. Não gostava da sua liberdade. Mas sempre lhe diz que faz tudo isso pela sua pecaminosa soberba.

Há dias em que não agüenta escutar calada. Há dias que o coração sangra. Há dias que dói saber que você nunca vai agradar porque nunca se espera isso de você. Há dias que você não suporta o eterno complexo de Electra em que saberá viver toda a sua vida. Há dias em que se perde, mas não se abandona.

É um retrato aflito. Confuso. Ferido. Cheio de nós cegos. Tenta. Reinventa. Sorri. Encolhe-se. De vez em quando chora, porque às vezes é preciso colocar as mágoas pra fora. E escreve pra ficar mais leve.

E pensa, pensa muito na vida. Está na hora desse vento aprender a soprar em outra direção. Sugiro um banho de chuva. Um mergulho no mar. E alguém para abraçar.



PS: O mundo de christina, 1948, Andrew Wyeth. Pintor americano realista, seu estilo se destaca pela interpretação realista, pela beleza franca e por uma exatidão quase fotográfica, transmitindo um forte impulso emocional. Suas obras maduras com freqüência possui elementos simbólicos. é um dos pintores norte-americano mais conhecido do século XX. Essa é a sua obra mais importante, sempre desejei expô-la aqui, eis que surgiu o momento.

terça-feira, 20 de julho de 2010

No campo do bem-querer


Sabe ontem quando eu me despedi de você?

Parecia o último encontro de Ilsa e Rick.

Eu que não acredito em amores impossíveis.

Você não conhece Rick loves Ilsa?

Casablanca? Tão famoso...

Vadiava um vento meio sem rumo.

E eu não me sentia tão culpada como antes de chegar.

Porque a culpa faz parte da coisa e você bem sabe.

Eu gostava de estar ali,

Com você, escutando você

E seus abraços me fazendo bem..

E eu pensando sempre,

Eu preciso encontrar alguém

Alguém sempre meu

Que tenha esse olhar teu

Eu te disse que pensei em você o dia todo?

Disse, e você gostou

Gostou como gostou de eu estar te desvendando

Gostou de saber que eu sei de você

É como chegar ao íntimo

Mais tão íntimo como se já fôssemos um

De tão igual que somos

Somos uma par.

Sabe ontem quando eu me despedi de você

Senti um frio na alma

Duma noite qualquer fria

E eu senti uma saudade muito grande

De um bem querer tão bonito e tão limpo

Que parecia filho embalado.


PS: Criador de um estilo inconfundível, aclamado como “o olho do século 20”, Henri Cartier-Bresson (1908-2004) deixou sua marca como um dos mais representativos fotógrafos humanistas da história pela forma como conseguiu mostrar enfaticamente a beleza dos gestos mais simples do homem, ao captar cenas de flagrantes pelas ruas do mundo.

Ps2: “Tirar fotos é prender a respiração quando todas as faculdades convergem para a realidade fugaz. É organizar rigorosamente as formas visuais percebidas para expressar o seu significado. É pôr numa mesma linha de mira a cabeça, o olho e o coração”. Esta frase define como o fotógrafo percebia a vida através do visor.

sábado, 17 de julho de 2010

Recado da primavera


Vadiava um vento meio arredio nessa tarde. Soa sempre engraçado dizer que sai pra comprar chá. Mas era uma tarde até azul. Azul anil. Quase se fez chuva hoje fez. Queria chá de maça verde. E não encontrei. Mas qualquer chá valia a intenção de sair pra prosear na rua. Já não era tarde calma, tranqüila e mítica. Era tarde de férias, inverno chegou e primavera lhe mandou recado de amor. Sossega que dias mais te venho encobrir de amor. A o velho amor bossa-nova chegou. Nessa tarde eu fui comprar chá e se não me recordo, nunca vi tantas crianças de uma vez só na minha ensolarada rua. Uma bola voava por quase entre minhas pernas e se não caí me arrancou um sorriso feliz. Mães e filhos fortes. Flores por todos os jardins. O jasmineiro não floriu. É saudade das conversas dos passarinhos. E por falar em carambolas. Eu gosto de carambola estrela. A moça da padaria não sorriu como já não é novidade. Mas o pão doce continua delicioso. E o queijo estava salgado. Os sapos da rua de baixo coaxavam. Fez-se noite na minha rua. Saem as crianças, entram as estrelas e lua. Não encontrei chá de maça verde. Nem de erva cidreira. Se encontrei, não por brincadeira, foram coisinhas miúdas no meio do caminho, essa eu achei e não procurei. Até gostei das pequenices do cotidiano que em vez de guardar no bolso, a gente leva no coração. Hoje a tarde teve gosto de almoço de domingo. E alegria de festa. E sorriso de criança. E chuva fininha. E foi tudo em um mês de julho.


PS: Da exposição "O Mundo Mágico de Marc Chagall". A Águia e a Coruja.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Notícias ao Nino e a quem mais interessar


Meu amorzinho, o céu hoje está negro. Raras estrelas no abrolhos de fim de tarde, e a lua anda quarto crescente. Mas curioso, o céu está belo. Diz poesia, parece noite de serenata. Tem uma estrela luminosa do lado da lua.

Chamou-me de amorzinho! Está a pensar. Explico-te. É um amor pequeno. Mas que sendo assim, tão miudinho, faz estragos de tufão. Se um dia ele há de se grande? Não possui pretensão o meu amorzinho, se sabe que ainda pode ser a cada instante ainda maior do que já é.

Escrevo-te para que saibas o que ando fazendo da vida assim, aqui, tão longe de você. Ontem caminhando pelo centro vi um ipê rosa, que dá muito por aí. Você provavelmente encontrará em qualquer ruazinha sossegada que você passar. Quase numa transmissão surpreendente (não para nós) você vai procurar nela a suavidade terna que eu admirei.

Já agora te digo numa carreira as novidades da semana. Ando lendo o Gabriel, sabe, meu amorzinho, eu sou uma Buendía, e isso nem parece tão inverossímil assim. Comprei ontem no sebo, Olhai os lírios dos campos, e numa página única lida fiz reviver todo o redemoinho de sentimentos guardados na lembrança. Não sei se os lírios ou o amor sempre possível me enterneceram o coração. Mas senti como se um pedaço de mim voltasse. Estou dando continuidade aos meus estudos das bailarinas de Degas. Bento, o gato felpudo quebrou a pata traseira. O jasmim laranja anda pelado e o jardim das papoulas foi forrado de folhas secas. Já é outono meu bem? Estou pintando um quadro da Tarsila numa bolsa minha (artes, sempre artes). Está ficando uma belezinha. Amanhã recomeço de onde parei A Reunião dos Nossos. Você ainda não me escreveu dizendo o que achou dos trechos que te enviei. És um ingrato!

Ontem me reuni com alguns bons amigos para beber uma garrafada de côco. Sua presença me fez falta. É que sinto saudades do flerte do brilho de seu olhar. Amanhã vou sair com o bloco que me falta um pedaço, leia-se esse pedaço, Dora, não a de Caymmi, mas a de Salgueiro.

Amiudadas vezes ando solitária. Mas de solidão boa. É solidão de poeta. E penso muito em você. Pra não sentir tanto a tua falta quanto você sente a minha, eu ando lavando muita roupa suja (essa foi pra você sorrir, porque você mangou quando eu disse que era essa a minha atividade doméstica preferida). Prometi a você que iria ficar bem. Estou tentando. Sim, ando um pouco triste por tudo, é natural. Saudades de tanta coisa. Minha vida anda agora, meu amorzinho, toda repartida no singular, sem par. Mas ela não deixou de ser um sunshiny day. I can see clearly now.

Meu amorzinho, quanto tempo leva um mês pra passar? E nesse caso, a gente chama saudade ou saudades esse sentimento de incompletude?

Então é isso. Eu amo você. Tão simples dizer.

Sua Laura.


PS1:Eu sou irreconhecível, irrecuperável, desaparecido que não aparecerá mais nunca, mas só tu sabes que em alguma distante esquina de uma não lembrada cidade estará de pé um homem perplexo, pensando em ti, pensando teimosamente em ti, docemente em ti, meu amor. (Rubem Braga)


Ps2: Water serpents, 1907, Klimt.


PS2:

segunda-feira, 12 de julho de 2010

História de um amor randômico que não cabe em romances de amor


Ele me compra com sonho de valsa e sonho de creme.

Ramalhetes de flores. Rosa murcha. Florzinha baldia. Ou cravo de defunto.

Compra-me inteira com despudores. Massagem nos pés. Ménage à trois. Beijo na mão. Conversas ao pé do ouvido. Olhares lascivos. Mordidas no pescoço.

Compra-me com bilhetes sacanas. Bilhetinho amoroso. Abreviado. Cartas de amor.

Convite inesperado para beber. Jantar a dois. Musica bonita por MSN.

Compra-me com saudades anacrônicas.

Desejos randômicos.

Abraços ao luar. Ele me seduz com a lua.

Compra-me dizendo que me ama, sem saber por quê.

Convite pra beber as três da tarde, às duas da manhã, até as dez da noite.

Propõe-me uma fuga num sábado. Praia a dois.

Compra-me com elogios impensados, e bajulados.

É igual a mim. Perfeitamente simétrico. Existe?

Beijo apaixonado. Impulsividade a dois, é loucura atroz.

Mando-lhe um poema perfeito. Ele me compra ignorando.

Empresta-me o chinelo. Depois um trocado. Oferece-me viagem.

Me dá socorro.

Leito de dormir. De sexo depois. Banheira de sais.

Compre-me logo inteira, lhe digo. Disponível. Logo se esgota. Imperdível.


Ps: O passeio, de Marc Chagall. Porque eu ainda sonho com um Chagall na parede de meu quarto.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Porque ainda não é a primavera...


Não era somente porque o desejava. Que lhe queria sentir o corpo sobre si. Nem o roçar macio de sua pele. Mas porque o admirava imensamente. Sofia Bianchi o amava imensamente às escondidas, dentro de seus livros, nas bailarinas de seus quadros, nas suas poesias e antes de dormir. Amava quando ele chegava. Sofria quando ele partia. Se bem que ele quase nunca partia antes dela... Será que ele sentia? Sofia o amava de longe. Dentro de seus olhos de instante, de menino. De menino lírico. Sonhava com os encontros de amanhã. Eles só queriam ficar a sós no instante da eternidade conversando todas as bobagens.

- E se eu morresse?

- A vida perderia as cores.

- E se eu adoecesse?

- Você seria a minha primeira prioridade.

- E se eu achar a tristeza normal?

- Não seria você.

- E se eu viajasse pra longe?

- Eu te buscaria.

- Num prenuncio de despedidas?

- Te abraçaria.

- Em desespero?

- Massagem nos pés.

- Sonho de creme?

- Mousse de chocolate.

- E se você não for meu?

- Eu morro.

Ela amava não tê-lo. Imaginar perdê-lo doía tanto. Era um amor intermitente. Que nascia a cada encontro. Absoluto. Fora das contingências e exigências do momento. Sartre e Simone. Sofia Bianchi o amava. Ele também a amava. A boca dela se acostumou com o sorriso leve. E as cores. O que ela mais gostava era as cores de estar apaixonada. Azul. Lilás. Anil. Brique. Cor de céu de aurora. Cores de Chagall. Ela amava tanto. Tanto que já não cabia nela, e escapava assim pela frestinha como sol de manhã invadindo quarto escuro. Era ele inteiro vazando dentro de Sofia. Em forma de boas ações. De bom dia ao motorista. Frases gentis. Ela amava os cachorros velhinhos. As crianças. A chuva. Algodão doce. O mundo inteiro. E ele. O mundo parecia sonho por causa desse amor. E o mundo poderia viver pra sempre bem.


PS: Amantes ao luar, Marc Chagall. Surrealismo russo. A qualidade cósmica da obra de Chagall nasce da vida cotidiana, por algum tempo, o artista parece esquecer os dramáticos fins e princípios.

PS2: Eu sonhei que tinha um Chagall na parede do meu quarto.

PS3: Para ler ao som de A Primavera de Vivaldi.