domingo, 25 de julho de 2010

Do dia em que eu vi ciganos


Era num tempo em que o tempo não se esquece, e as engrenagens da minha vida onde os acontecimentos parecem se repetir me fez voltar a ele. Uma sensação jamais esquecida e que nem mesmo eu pude distinguir com clareza fez minha memória regressar a um passado tão longínquo. Foi num tempo em que eu vi ciganos.

Eu deveria ter ao menos seis anos e minhas lembranças eram sempre pregadas com firmes alinhavos de pontos duplos responsáveis por até hoje eu me recordar com nitidez pequenos acontecimentos que de tão insignificantes deixaram marcas substanciais.

Brincava no terreiro debaixo de um pé de jenipapo que ainda posso sentir o cheiro forte e doce, a frente da casa do engenho uma fogueira quase extinta da noite passada, mas ainda sua fumaça turvava a minha visão. Eu sustentava um galho seco na mão, fazia arabescos com ela no chão, tão absorta nessa atividade, senti apenas de súbito a mão da minha avó agarrando a minha. Arrastou-me para dentro de casa de uma forma quase selvagem enquanto eu me debatia sem saber o motivo de ser eu sua presa. As tias velhas correndo dentro de casa fechando portas e janelas, mas se aboletando atrás delas para expiar pela fresta. Eu ainda tinha coágulos de sol na vista quando eu vi por entre uma fresta, que mal cabia meu dedo mindinho de seis anos de idade, um grupo de ciganos bandoleiros que saíram de dentro da mata que cercava minha casa.

Como eu me recordava com nitidez de duas mulheres bonitas, que se sobressaiam do resto do grupo. Uma delas usava um vivo vestido vermelho. Parecia uma rosa arisca. E a outra, me lembrava os coágulos de soldos meus olhos. Estava de amarelo florescente. Eram os ciganos que passavam por minha porta em dias de lua cheia. Na noite anterior eu havia escutado um barulho longe, e que não incomodou de forma alguma meu sono. Mas me deixou lembranças, o som, as cores, a neblina de fumaça, o cheiro doce e enjoado de jenipapo, e o medo infantil da minha avó e das tias velhas. Depois ouvi a conversa na cozinha sob o som da chaleira bulindo no fogão. Tinham medo de ciganos porque diziam que amargavam as pessoas quando as fitavam. Como se precisasse disso para tornar azedas as minhas tias velhas.

Ontem foi noite de lua cheia. Reencontrei antigas histórias de ciganos na época em que me mudei para Bonança. Há um morro, ainda há uma mata densa, e sempre houve lua cheia, por muitos anos escutei o mesmo som de tambores e pandeiros, a mesma música alegre e doce. E senti o mesmo medo cristão da minha avó e das minhas tias velhas. Só não mais encontrei ciganos.



PS: Portraits country, Gustave Caillebotte. Pintor francês, da escola realista. Seu objetivo era pintar tudo o que via de forma realista, como Degas e compartilhava o comprometimento com a verossimilhança ótica dos impressionistas.

Um comentário:

Anônimo disse...

Que lindo esse conto! *-* Eu nunca vi ciganos dessa forma.