Querido Nino
Hoje ao acordar, fiquei um longo tempo no calor dos lençóis, escutando de longe o amanhecer ruir. Os sons íntimos do cotidiano calmo. Canto de canário da terra. Sussurro de criança. Nosso cachorro latindo. Farfalhar de árvores. Ventinho bulindo o mundo. Sol treloso entrando pelos buraquinhos do telhado. Nino, meu bem, a Cléo aqueceu meus pés hoje. Verdade quase incrédula, porque ela anda muito arisca nos últimos dias, mas acho que ela estava com saudades de ti, como eu.
Sabes, te escrevo nessa amorosa melancolia porque hoje relembrei de nós dois. Quando éramos amigos, somente. Nossa imensa capacidade de ternura falava ao silêncio da nossa perfeita intimidade. Nunca havíamos nos beijado, mas nossos pés se esquentavam constrangidos, pelo desejo só do toque. E nossas pernas desejavam o roçar macio da penugem que nos encobria. Restava a imobilidade. Falávamos baixo pela necessidade do rosto próximo. Você lembra Nino? Havia economia nos gestos, timidez mesmo, gagueira infantil de quem deseja falar o evidente. Depois, nos meus cabelos tu me acarinhavas, tua mão já me tateava antes de me ter, havia o medo de ferir no toque, de tua mão forte de homem fez-se a delicadeza de pétala nas pontas dos dedos. E eu lá, parada, na inércia infinita de teus carinhos. Isso valia mais que beijo consentido. É uma expressão de pureza de sentimento. O tempo tudo faz.
Amanheci com a idéia vaga de solidão, que de repente faz-se saudade. E vejo em tudo minhas lágrimas cansadas, teu rosto na sombra, teus olhos na memória e a distância inimiga. Sinto tanto a tua falta.
E para matar a saudade de teus olhos doces ando estudando com afinco o novo pintor que descobri já velho. Chama-se Lasar Segall, e sobretudo, o que há de melhor nele é que sendo russo (a velha paixão nossa) apaixonou-se pelo Brasil, por Tarsila do Amaral e por Drummond e tomou nossa impressionante e colorida forma de pintar. Nino, meu bem, Segall foi a minha maior descoberta este ano, ando encantada com ele. Fiz alguns desenhos dele, olhas e me respondes o que achastes, gosto da tua sinceridade terna, de quem possui a elegância de não saber magoar.
Nino, meu bem, ontem passei a noite escutando o velho disco do Vinícius e a valsa para uma menininha, chorei porque Vinicius me leva sempre às lágrimas. Fiz a broa de milho que você gosta e tomei com café. As férias de verão chegaram e o calor anda insuportável, mas o dia é sempre lindo. Estou começando a gostar dos meus cabelos lisos e fartos, parece que realmente eles foram feitos para mim. Montei nossa árvore de natal, mas os gatos (Vidigal, Bento e Dora) derrubaram. E não vou te contar por carta ainda, tudo o que eu tenho vivido, e o que venho aprendendo, deixo-te a curiosidade que é pra te atormentar e não esqueceres de mim nunca, em nenhum instante. Não te zangues não, meu bem, que sabes que sou ciumenta e boba, e por ti sou uma eterna perdida, pobre de mim.
Tua Laura, esta que sempre te ama.
PS1:Carta, George Goodwin Kilburne, (Grã-Bretanha, 1839 – 1924) pintor de gênero, trbalhando em Londres, especializado em interiors com pessoas. Preferia trabalhar com aquarelas ainda que tenha muitas pinturas a óleo, desenhos a carvão e até mesmo muitas litos. Conhecido pela riqueza de detalhes em suas pinturas, característica que levou da arte da gravura em metal para a pintura. Foi um dos pintores preferidos das classes altas inglesas de quem fazia retratos com delicadeza e cuidado com muita atenção a todos os ricos interiores.
5 comentários:
Cartas para Nino,sempre ótimas.
Ps.: O nome da gata é Dora huahuahauhuaua
Saudadinhas das cartinhas para Nino, elas sempre trazem uma sensação de tranquilidade pra mim.
Que massa =) Gostei mesmo :D
Sempre o Nino. ;)
Essas Doras, sei não, viu?
Nino é um sortudo, baby.
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