Meu caríssimo amigo, desculpe a ausência. A falta de presença. A total displicência. Desculpe-me querido pelo imenso exercício de egoísmo que tenho demonstrado. Há mais de um mês venho pensando demais em mim, demasiadamente em mim. Diante de tanta indiferença aos outros, não tive tempo de te escrever como merecias. Mas ao menos posso confortar-te e revelar que tenho lido teus textos. Os novos e os antigos. E como sempre, andam me causando um rebuliço na alma. Principalmente um que tanto lembrou-me Proust. A sua imensa busca por algo que já se passou. O que me levou a antigas lembranças do sítio. No fim da tarde o café bulindo na chaleira, o fogo de lenha crepitando. Sem nem saber por que me lembrei daquela música: aí que saudade que eu tenho, das noites de são João... Sei lá. São reminiscências apenas... Fico andando pela casa pensando em retribuir com algumas palavras suas inquietações tão minhas. Fico do quarto para o terraço, conjecturando a grande resposta que aliviará nossos ânimos e satisfará nossos anseios. Porque tanto vazio Florius? O que está acontecendo a nós? E se eu der uma resposta será que ela ajustaria meus interesses a orbita do que eu tenho feito nos últimos dias. A esse nosso grande propósito. A literatura. Às vezes Florius querido, eu me sinto morta. Nada parece realmente valer a pena. Que literatura, querido, eu estou buscando fazer? Tudo me parece tão vazio. Nada parece valer todo o meu esforço, toda a minha abdicação. Nessas horas Florius, meu bem, sinto uma vontade imensa de fumar. Afeta-me sobremaneira a minha covardia diante das ousadias da vida. Sim, meu querido, porque fumar ainda é pra mim algo muito ousado. Ria-se vá! Eu sei que mesmo se eu não assentir você o faria. E deve ainda pensar, está cá não nega ser de Bonança! Tenho até meu caro, evitado o álcool. Sim, pasme! Mas é por motivos de saúde. Olhe querido, nem vou perder tempo te contado como fui mal de saúde esses dias, é desnecessário. Mas confesso-te apenas, como sofri!
A muito que não vou ao café, nem com Sofis, nem com o Helano. Veja você, eu estar evitando o café, parece algo muito inusitado. A mim que sempre interessou essa atmosfera encantadora dos cafés que freqüentávamos nós todos, revezávamos para que nossos espíritos conturbados e enfurecidos não se chocassem com o gênio do outro. Éramos um grupo e tanto.
Florius ando péssima. Não consigo mais escrever. Ando triste. Sem inspiração alguma. E minha moral anda assim mole como traço de boca de velho. Parece falecida. Dramaticamente afetada com um infarto de não ideias. Estou blasé, meu amigo. Não há elegância nisso Florius, pelo contrário. Isso é paralisia querido, paralisia de sentidos, padeço de atenção. A quietude dos quadros de Johannes Vermeer. A mesma luz plácida me banha. E nada anda acontecendo que me inspire. Quero fazer literatura Florius, ou vou morrer... Talvez seja prenuncio de alguma revolução, mas Florius, eu preciso de dias de desassossego.
Você busca algo, como o Proust. E eu não consigo nem sair a busca Florius querido. Ando fazendo tão pouca literatura. E o que venho fazendo é tão falido e mal. É lixo. Grandíssimo lixo. Ando me perguntando se realmente é mister escrever. Sou uma escritora Florius? Ou ando presa ao cárcere da arte literária? Eu sou uma inutilidade e a minha literatura de nada tem me valido. Tem? Minto Florius? Ela que se vale de mim. Ela que anda sugando os meus grandes dias. Ela que anda me atormentando. E o pior, é que sei que estou atada a ela como um bêbado ao álcool. Ela é que se vale de mim, a literatura, a ponto de tornar-me assim ridícula diante de ti. Florius, estou em desespero. Perdi minha inspiração. É como se perdesse meus sentimentos.
Mas que tola! Pra que estou a te dizer tudo isso? Desabafo, talvez. Mas talvez eu esteja sim desesperada por que estou vendo você fazer grande literatura enquanto eu ando parada na esquina da solidão. A literatura está me matando Florius. Ela vai me matar. E eu só queria as respostas para as minhas inquietações.
Mas deixemo-nos disso. Vamos ao domingo. Ele hoje é de sol.
Perdoe-me o humor (a falta dele), mas é que ando azeda, meu querido. Precisava de você aqui.
Sua amiga sempre amiga,
Laura da Hora
Ps: Moça lendo uma carta, 1657. Johannes Vermeer Van Delft pintor Holandês. Repare na Luz utilizada pelo pintor para recriar toda a atmosfera. O incrível de Vermeer é que essa janela e sua luz rendeu grandes pinturas para ele. Uma das mais importantes é moça com brinco de pérola.
2 comentários:
Apesar de se tratar de uma carta, corporação textual que particularmente acredito que não se exija nada mais do que uma considerável sensibilidade para uma boa construção literária, o que foi proposto fazer foi realmente bem feito.
Aliás, notei uma possível influência lusitana no perfil de seus escritos... alguma lusa descência? Ou leitura demasiada de Pessoa?
*descendência
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